terça-feira, 20 de outubro de 2009

Falso retrato.

Hoje acordei e vesti um casaco. Até aí, nenhuma novidade. Visto um praticamente todos os dias. Mas vesti um casaco antigo, que fica grande em mim e chega a dar a impressão de que não é meu. Ao vê-lo no guarda-roupa, lembrei que ele tem um casaco igual ao meu. Preto, de zíper, com bolsos na frente e grande. Deve ter sido comprado no mesmo lugar e mais ou menos na mesma época. E nem lembro se já sabia quem era ele. Sei que peguei o casaco hoje de manhã e lembrei. Lembrei dele com o casaco preto num dia qualquer a noite, com a mochila nas costas e a chave do carro na mão. Lembrei e vesti por ser minha última opção. Mentira. Mas era a mais rápida. A última - ou a primeira - coisa que preciso e quero é ter uma lembrança tão perto e tão em mim. Tão em mim que não preciso olhar. Basta sentir e ele estaria, não do meu lado, mas abraçado comigo. Vesti o casaco mesmo assim, por pressa, por sono, por não ter idéia do que me causaria. Vesti o casaco, coloquei os fones no ouvido e escolhi o que haveria de mais óbvio pra ouvir. Andei olhando pra baixo, vendo o casaco que vi nele - e que não lembrava que tinha - em mim. Gosto de ficar em casa com camisa de homem. Desde criança gostava de dormir com as camisetas do meu pai, que me serviam de camisola. Acho bonito mulher em casa, vendo televisão, com a camiseta do namorado. A mulher fica ainda mais feminina com camisa de homem no corpo. E eu andava na rua com um casaco, preto, de zíper, com os bolsos na frente, igual ao dele. Casaco que eu não poderia saber da existência sem as terças-feiras à noite. Não saberia de nada sem elas. Não saberia do casaco, nem do cheiro, nem do abraço, nem do sorriso depois do abraço. E o fato é que quando os casacos trocam de corpos, misturam-se os cheiros e uma mulher fica mais perto quando veste o casaco de quem gosta. As terças me trouxeram um casaco que eu já tinha e um cheiro novo, que gostaria de ter no meu casaco - ou ter no corpo o casaco dele. O casaco me acompanhou o dia todo, e junto com ele a lembrança. A lembrança do que foi, do que não foi e do que eu gostaria que tivesse sido. E, durante o dia todo, eu quis o casaco dele. Eu quis o cheiro dele. E o pior de tudo é que eu ainda quero.

sábado, 10 de outubro de 2009

"Tem coisa mais terrível do que você descobrir a sua própria solidão? É muito ruim quando você se dá conta de que não adianta casar, não adianta ter filho, não adianta ter pai, não adianta ter irmão, não adianta ter amigo, não adianta ter nada, não adianta escrever, não adianta pintar, não adianta trabalhar, não adianta contemplar, não adianta saber que existe o cosmos, não adianta. Tem uma coisa que é você, que não é o outro, que é você e você não vai poder trocar de lugar com o outro, que tem um lugar lá que é intransponível, que é indizível, que você não pode compartilhar, que você pode ficar conversando, dialogando, tagarelando o dia inteiro com as pessoas, você pode ler tudo, você pode tentar transmitir todas as informações, pode fazer poesia pra morrer e tem um lugar lá que é o lugar que você se dá conta que na hora da sua morte, naquelas horas que você tem plena consciência de que você é um ser que vai morrer, naquela hora, você é só você."

(Márcia Tiburi)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Se eu fosse eu, viveria de sonho e de música e de livros. Não perderia um nascer da lua. Saberia todos de cor. Tomaria banho de chuva, tiraria o relógio do pulso, escreveria mais e melhor. Se eu fosse eu, teria todos os cds das bandas que sou fã, todos os livros de Clarice e muito mais anéis. Se eu fosse eu, me exaltaria menos nas discussões - porque na maioria das vezes não me faltam argumentos, mas calma pra dizer todos eles. Se eu fosse eu, não teria medo de dizer o que sinto, de demonstrar que gosto, de dizer que me importo, de dizer da falta de tudo, que sinto saudade. Se eu fosse eu, abraçaria mais, demonstraria mais. Se eu fosse eu, diria das minhas chateações e satisfações, não guardaria tanto. Se eu fosse eu, sentaria pra conversar tudo o que há de mal resolvido dentro de mim.

Se eu fosse eu, perderia o medo de falar em público.

Perderia o medo de de falar.

Perderia o medo.